A vida começa onde as certezas acabam

Aquele que procura análise (Psicanálise) está procurando vida. No entanto, é nesse momento que se encontra no estopim da alienação de si mesmo. Este é o melhor momento em que ele poderia estar. E por que dizer que está alienado de si? A alienação teve início em algo que foi perdido – ao ingressarmos na linguagem, ganhamos o mundo e perdemo-nos de nós mesmos – e que foi tentado ser recuperado de diversas formas não satisfatórias (tal como os planos infalíveis do Cebolinha da turma da Mônica) e, mesmo assim, na insatisfação e na incompreensão que a pessoa foi assimilando e ajeitando-se em sua vida.

Ao chegar à sessão, ele(a) fala de si sem conseguir de fato se aproximar de quem é. E traz a sua identidade que foi moldada de diversas formas em seus papéis sociais e que, colando uma na outra, acredita conseguir dizer um pouco a partir do que chama de “eu”, “meu”, “minha”. Mas o analista sabe que ali, naquele discurso, não há sujeito.

E onde está o sujeito então? Segundo Lacan: “existo onde não penso”.

Enquanto alguns acreditam que existem nas suas certezas – e tal campo pertence ao lado cognitivo, consciente – podemos ter segurança em afirmar que aí o sujeito não está. Aquele discurso traz consigo um material muito rico: onde estão todas as histórias, os marcos, os traumas e os sabores da vida daquele que o narra. Ao narrar não apenas lembra, mas reconstrói todos esses laços de transferência estabelecidos, e que deram sentido à sua vida. E é pelo fato de ter criado tais laços que na análise consegue também estabelecer um laço transferencial que o permite renovelar sua história.

O sujeito passa a existir quando acessa seu desejo. Ele se lembra do que o saciava, como expliquei num post anterior.

E onde está o analista?

Segundo Freud, “no processo de procurar a libido que fugira do consciente do paciente, penetramos no reino do inconsciente”. Como assim? Segue aqui um link para mais aprofundamento.

O analista está logo ali, do outro lado do laço, buscando encontrar o sujeito indo na direção contrária à narrativa, mas seguindo sua linha, bem no meio da encruzilhada. Ele embarca no discurso, considerando as crenças cristalizadas, mas sem se ater a elas. Constrói o percurso em que irá fazer emergir, inaugurar, o sujeito nas brechas de discurso – onde não há a lógica, certeza, coerência e cognição – onde algo essencial ficou de fora. E irá encontrá-lo no momento do ato – ato falho, chistes, sonhos – ou mesmo, no “ato psicanalítico” – que inaugura uma ação, tomada quase de supetão pelo sujeito que pode então se ver/enxergar, como se visse no espelho pela primeira vez (resgate daquilo que não especularizou): agora podendo dizer: “este(a) sou eu”.

Como dizia Drummond: “E agora José?”. O que fazer?

A análise, como o próprio nome diz, é a separação/ruptura de todos esses conjuntos identitários que formavam de modo tão concreto, mas também alienado, aquele que se segura viceralmente num “eu”. Ao separar esses modelos mentais, eles deixam de se sustentar e fazer sentido. E, agora, qual a parte que lhe cabe aí? (Como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto, também cantado pelo nosso querido Chico Buarque: “Qual a parte que lhe cabe nesse latifúndio?”).

Perder-se para encontrar-se: eis a questão. É preciso estar disponível para tal. Disponibilidade esta ocupada pelo analista, que deve sair do lugar de sujeito suposto saber (autoridade) e ocupar o lugar da falta (perda) para representar o indizível, o não elaborado. E nesse processo, abre-se um espaço para o vazio, para o choro, o suspiro ou para o que tiver que advir. E abre-se aí, notadamente, um espaço para o sujeito existir, despegado do que acreditava ser.

 

Referências:


ANDRADE, C.D. E agora José? Disponível em: <https://www.culturagenial.com/poema-e-agora-jose-carlos-drummond-de-andrade/>, acesso em 15/06/2018.

FREUD, S. A Dinâmica da Transferência. Obras Completas. v, 12, cap. 4, 1912.

LACAN, J. O Ato Psicanalítico. Seminário 1967-68. Livro XV. Notas de Curso. Seminário de 15 de novembro de 1967.

NETO, J. Qual a parte que lhe cabe nesse latifúndio? Disponível em: <https://www.letras.mus.br/chico-buarque/90799/>, acesso em 15/06/2018.

 

Sigam-me,

 

Cristina Monteiro – Psicóloga, Psicopedagoga, Coach, Palestrante, Psicanalista. Atende na Clínica com Psicoterapia (enfoque psicanalítico) e Coaching em Resiliência (controle do estresse). Ministra palestras e treinamentos comportamentais em nome da sua empresa (Ponto de Palestras e Treinamentos). Escreve semanalmente neste blog. Acompanhe.

Contate-me: contato@cristinamonteiro.com.br

4 Comentários


  1. Como esperneei nas sessões de psicanálise que fiz já há muito tempo: uns 20 anos. O artigo desse blog – A vida começa onde as certezas acabam – mostra em linguagem totalmente acessível o que é que se busca na psicanálise. Claro que com a vivencia, a prática conquistadas hoje as palavras ressoam por demais. Penso que seja totalmente útil as pessoas se darem conta disto tudo e esperançosamente façam psicanálise para dar continuidade à vida, ainda mais quando as certezas acabam trazendo algum sentimento que precisa ser trabalhado.

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    1. É isso mesmo Fadel. O artigo traz uma visão positiva sobre as nossas desilusões: a possibilidade de se rever e se construir a partir da análise, retomando a esperança e a graça na vida. Fico feliz em ter retomado, por este texto, algo do seu processo. Super abraço, CrisM.

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