Análise lacaniana a partir do filme “À Beira Mar”

O que não pode ser dito se manifesta na ação

O artigo de hoje tem por base o filme americano “By de Sea” (À Beira Mar) de 2015, drama romântico escrito e dirigido por Angelina Jolie Pitt (no papel de Vanessa, uma ex-dançarina), e produzido juntamente com Brad Pitt (no papel de Roland, um escritor).

Esse filme é bastante monótono, pois revela, na própria ação, o vazio da vida dos protagonistas: um casamento que persistia em se manter, mas já se dava por acabado. Em síntese, o casal resolve tirar uns dias à beira mar (daí o nome do filme) e têm que se a ver com suas maiores frustrações. No meio de tantos desencontros, era ali, no quarto do hotel em que este casal ficara hospedado, que havia um buraco na parede, por meio do qual era possível ver um outro casal, em plena lua-de-mel, cheio de vida e de amor. Tal situação gerou curiosidade, diálogos, expectativas, mudanças…

Vanessa: de uma depressão, instalada numa dor que não podia ser elaborada, veio um ato: traição. Tal traição foi assistida a olho nu pelo buraco da parede: Roland presencia a esposa, denuncia a sua dor (adultério causado pela dor do envelhecimento e da infertilidade) e consegue expor todo esse conteúdo indigesto num diálogo.

 

Lacan: o buraco onde me encontro

A definição de “o ser humano” em francês “l’être humain” é pronunciada “trou”, ou seja, buraco, buraco esse que nos faz ser humano, que nada preenche e que nos faz buscar pelo desejo a vida. Esse mesmo buraco que nos angustia e que, em análise, o analista tentará, muito a contragosto do analisando, mostrar-lhe.

A função do analista de sustentar o “buraco que nada preenche” é ajudar-nos a sustentar o nosso insustentável. Qualquer tentativa analítica de preenchê-lo é vã. Por isso fazer análise não é fácil. Fácil é encontrar supostas respostas e soluções que tentam sem sucesso tamponar nossos problemas.

 

Como é a fala do analista lacaniano?

O analista lê a letra do sintoma, aquilo que se repete, buscando no real (na nossa ação) onde está o foco e a nossa intenção, procurando entender o porquê da repetição. A repetição se faz perfeita para o sujeito, tão clara que nela se instaura a sua lei (lei do arco reflexo: daquilo que manifesta para nós de modo tão automático como a campainha que fazia salivar o cachorro que condicionalmente esperava pela comida no experimento de Pavlov).

“Se um dia ultrapassar um certo limiar onde me coloque fora da lei, esse dia minha motricidade terá valor de ato” (Lacan).

 É no momento em que o analista consegue nos fisgar “fora da lei”, ou seja, em algum deslize dentro daquilo que é tão correto para nós, é que ele vai nos mostrar, pelo simbólico (pela palavra, pela linguagem), o nosso inconsciente. E aí, todo desconexo, que a gente faz cara de “ué” (cara de “gaveta aberta” como diz a psicanalista Glória Maria Vianna) e volta cheio de perguntas para casa. Momentos depois, percebemos que demos um grande passo para dentro de nós mesmos.

A análise é o tratamento do real pelo simbólico, ou seja, do sintoma que se repete – aquilo que é vivido, mas não elaborado – pela linguagem: experiência que propicia a elaboração do saber pela escuta, perpassada pela transferência (conexão entre analista e analisando).

 

Conexões entre o filme “By the Sea” e a reflexão acima

Vanessa era muito frustrada devido ao fato de ter envelhecido e perdido a condição de bailarina e de mulher jovem e fértil. Assim, mantinha um casamento em que demonstrava o tempo todo ao marido a sua morte e a sua intenção de que ele desejasse outras mulheres. Como isso não acontecia, a sua ação de trair mostrou a ele sua necessidade de ser vista “viva”.

Tal atitude trouxe à tona suas dores ao mesmo tempo que pôde pôr fim a dois casamentos: o deles e o do casal recém-casado, como era seu objetivo: se ela não poderia mais ser feliz, ninguém mais poderia.

Ai se a personagem Vanessa tivesse se deitado num divã ao invés de… O ato psicanalítico poderia trazer à tona esses conteúdos e ajudá-los na elaboração. Afinal, o que não pode ser dito – e elaborado – se manifesta na ação. E essa é uma questão de escolha.

 

Referência:

Lacan, J. O Ato Psicanalítico. Seminário 1967-68. Livro XV. Notas de Curso. Seminário de 15 de novembro de 1967.

 

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Cristina Monteiro – Psicóloga, Psicopedagoga, Coach, Palestrante, Psicanalista. Atende na Clínica com Psicoterapia (enfoque psicanalítico) e Coaching em Resiliência (controle do estresse). Ministra palestras e treinamentos comportamentais em nome da sua empresa (Ponto de Palestras e Treinamentos). Escreve semanalmente neste blog. Acompanhe.

Contate-me: contato@cristinamonteiro.com.br

2 Comentários


  1. Querida Cris , maravilhosa , sensível e profunda reflexão !
    Só temos que agradecer você compartilhar através do seu blog.
    Parabéns!!! E que venham mais textos como este .

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    1. Arlete! Muito obrigada! Fico feliz que tenha gostado! Sim, vamos continuar compartilhando nossas reflexões e análises. Grande abraço! CrisM.

      Responder

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