Sem raízes nem asas

“O ego não é senhor em sua própria casa.” (Freud)

Filme: “Um homem de sorte” (Netflix)

 

Sinopse 

Tal drama retrata uma invenção criativa sobre a vida do próprio autor do livro no qual o roteiro foi baseado, Henrik Pontoppidan, Nobel de Literatura em 1917. Ele narra a vida de Per Sidenius (Esben Smed), um jovem pertencente a uma família tradicionalmente religiosa, que contraria os desejos do pai – de continuidade religiosa – para seguir uma carreira ambiciosa como engenheiro em Copenhage.

Em síntese, o protagonista vive três histórias: a recusa a seguir a religião da família; a relação conflituosa com a família de origem e com as que tentou formar; e sua batalha contra os seus monstros internos.

 

Análise psicanalítica do filme

Este drama trata da história de um jovem humilde e muito inteligente que teve seu maior trunfo – a idolatria ao ego (inteligência, orgulho e ambição) – transformado em sua verdadeira derrota. Considero bastante interessante e intrigante o nome do filme (“Um homem de sorte”), já que a vida – ou mesmo o destino – não se baseia em sorte ou azar, mas naquilo que fazemos dela.

Segundo Freud, o homem não é dono de si, pois ele é governado pelo seu inconsciente. O inconsciente é a base onde se encontram todas questões que não foram bem resolvidas, todos os não-ditos familiares, os medos, as dores mais ocultas e que ali se encontram de forma distorcida reinando em nossa vida a todo momento sem que aceitemos ou mesmo acreditemos em seu poder de impacto.

Per tinha questões bastante mal-resolvidas de infância com sua família, notadamente com seu pai. Sua família era cristã e humilde. Ele, rebelde e genial, decidiu romper totalmente com essa base para ter um destino diferente. Nem mesmo no leito de morte de seus pais, reconheceu a necessidade da humildade cristã, de um reconhecimento que honrasse suas origens.

Em determinado momento, menciona: “Não tenho raízes”. Sem raízes, não era possível construir nada sólido (família, reconhecimento profissional, sucesso financeiro), muito menos ser livre, como ele tentava a todo custo. Só que ele não se lembrava de que tinha raízes, mas, por opção, as havia negado.

Ao longo de sua vida, após muitas perdas e tormentos, reconheceu que não conseguiria seguir adiante devido a essa negação. Sua mente encontrava-se totalmente atormentada e sem rumos. Acreditava que isso poderia ser um tipo de maldição cristã ou mesmo um castigo de seu pai já falecido. Tal compreensão errônea já fazia parte de uma doença mental: acreditar-se separado do mundo e não se perceber causa de seus próprios atos, considerando ainda a religião como grande punidora de seus comportamentos.

Per teve que perder tudo – família de origem, família que tentou construir, família que havia construído, prestígios com seu talento e esforço, dinheiro e amigos. Ao final da vida, após muitos anos sozinho, desenvolveu ainda a mesma doença de seu pai (câncer) e entregou o pouco que havia juntado financeiramente à primeira noiva, em reconhecimento ao seu perdão.

 

Conclusão

O excesso de apego ao ego fez com que Per perdesse a noção de sua relação com o meio e com os outros. Ao negar a família de origem, negou todas as relações. Assim, poderia existir narcisicamente sozinho. Só não sabia que ao fazer isso também se despedaçou e não seria mais possível continuar.

Assim como Per encontrou ao final da história com o que sua mente buscava – a si mesmo – sua noiva, que também quis negar uma tradição, encontrou o que buscava. Só que no caso dela, a busca era por uma ampliação, gratidão e expansão da fortuna recebida aos menos favorecidos.

Ao final, é possível notar que o destino é produto das nossas ações movidas pelo nosso desejo inconsciente, e não uma questão de acaso ou mesmo de sorte.

 

Referências:

Disponível em: <https://entreterse.com.br/resenha-um-homem-de-sorte-original-netflix-24318/>, acesso em 18/05/2019.

Disponível em: <https://cinemacomrapadura.com.br/criticas/542536/critica-um-homem-de-sorte-netflix-2018-enfrentando-monstros-internos/, acesso em 18/05/2019.

 

Sigam-me,

 

Cristina Monteiro – Psicóloga (PUC-SP), Psicopedagoga (Instituto Sedes Sapientiae) e Psicanalista. Atende na clínica com psicoterapia (enfoque psicanalítico) e coaching em resiliência (controle do estresse) – consultório em Pinheiros (São Paulo). Ministra palestras e treinamentos comportamentais in company pela sua empresa Ponto de Diálogo e Reflexões. Escreve semanalmente neste blog. Acompanhe.

Contatem-me: contato@cristinamonteiro.com.br

2 Comentários


  1. Muito pertinente a sua análise Cris. O seu texto me fez pensar também sobre o livre árbitrio que na prática nem sempre é possível, uma vez que, as nossas escolhas são movidas pelos nossos desejos, medos e fantasias inconconscientes.

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    1. Que bom que esta análise fez sentido pra você Cássia! Bem válida essa reflexão né? Rende bons frutos para nossa vida pessoal e profissional. Obrigada pelo comentário. Beijos!

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