Você é quem você se diz ser?

Breve análise psicanalítica do Filme: “A Mula”

O filme “A Mula”, de Clint Eastwood, trata de questões humanas fundamentais como vida, família, ganância, arrependimento, culpa, responsabilidade, dor, tristeza, morte.

Mas o que me instigou a abordar este filme foi a questão do sentido da vida do protagonista, Leo Sharp (Clint Eastwood), que pôde se constituir ao lidar com o fato de assumir a responsabilidade pelos seus atos e, com isso, instituir-se como sujeito da sua história.

O conceito de sujeito em Psicanálise difere da concepção de sujeito social. Segundo Lacan, isso ocorre porque o que faz do indivíduo o sujeito de sua história é o fato de ele emergir na relação entre os significantes no momento da fala. Em outros termos, de modo bem resumido, é a partir da linguagem que o sujeito pode ou não advir e existir.

O personagem principal do filme (Sharp) passou a vida inteira se dedicando à vida profissional com seus prêmios e reconhecimentos e pouco se dedicou às questões de sua vida pessoal. Após tantas decepções familiares, ele pôde entrar em contato com a dor de não pertencer àquela família e da sua responsabilidade nesse âmbito.

Ao entrar para um outro tipo de trabalho – ser “mula” de transporte de drogas – função atribuída a pessoas que ou “não existem” (“Zé Ninguém”) ou que passaram a existir por causa dessa função (eu não era ninguém e agora as pessoas me temem) – Sharp se diferenciava por não ocupar nenhuma dessas posições. A posição que ele buscou naquele momento era justamente a de culpado, culpa essa que não se ateve apenas à atividade ilegal, mas que abrangia tudo o que fizera e o que não fizera em relação à sua vida pessoal e familiar.

Tal personagem vive então a dor de existir*, ao participar mais afetivamente e ativamente da vida familiar em momentos de grandes dificuldades. Presencia a morte da esposa, mas, antes disso, ela o perdoa e alivia sua dor. Ele corre risco de vida, mas não coloca essa situação como a mais importante: tenta orientar (também afetivamente) aqueles que seguiam o mesmo caminho só que com outras intenções, afirmando que a felicidade não estava ali.

A questão que venho destacar é a de que o fato de ter sido mula com o intuito que ele teve estava muito além do que fez na maior parte da sua vida. Ele não mais queria esconder-se e sumir, pelo contrário, urgia por ser visto e nomeado pela sua nova postura frente à vida.

Ao assumir-se culpado perante a lei, Sharp surpreendeu a todos. Muitos queriam reaver a situação, mas, para ele, era nítido o alívio daquela sentença. A partir de então, pôde arcar com muitos sofrimentos que estavam anônimos dentro de si. Sua angústia teve nome e seu lugar físico estava preservado (segundo uma de suas filhas, agora que ele estava preso finalmente elas saberiam onde encontrá-lo). Mas, principalmente, ele agora sabia onde se encontrar: o sujeito pôde finalmente existir.

 

*Lacan extraiu do budismo a noção de “dor de existir”, inserindo-a em sua obra. A dor de existir é consequência da existência do sujeito no campo da linguagem. É o seu destino. Para existir como sujeito o homem está condenado a se alienar, a “ex-sistir” fora de seu corpo, identificando-se ao significante que o define, dependendo do Outro simbólico, que preexiste ao sujeito. A dor de existir surge quando o prazer dá lugar à dor na vida do sujeito, o desejo não está mais presente, manifestando-se o castigo por ter desejado. É a morte mordendo a vida. (MATZ, R.)

 

Referências

MATZ, R. A dor de existir. Disponível em: <http://jardimlacaniano.blogspot.com/2013/04/a-dor-do-viver.html>, acesso em 08/03/2019.

VIEIRA, M. A. Dor de existir, tristeza e gozo. In: Almeida, C.; Moura, J. M.. (Org.). A dor de Existir. 1 ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, v. , p. -.335-343. Disponível em: <http://www.litura.com.br/artigo_repositorio/dor_de_existir__tristeza_e_gozo_pdf_1.pdf>, acesso em 08/03/2019.

 

Sigam-me,

 

Cristina Monteiro – Psicóloga (PUC-SP), Psicopedagoga (Instituto Sedes Sapientiae) e Psicanalista. Atende na clínica com psicoterapia (enfoque psicanalítico) e coaching em resiliência (controle do estresse) – consultório em Pinheiros (São Paulo). Ministra palestras e treinamentos comportamentais in company pela sua empresa Ponto de Diálogo e Reflexões. Escreve semanalmente neste blog. Acompanhe.

Contatem-me: contato@cristinamonteiro.com.br

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